segunda-feira, 26 de maio de 2008

Borboletinha verde

Sentia-se como se ofendesse aos outros com seu sexo. Com sua doçura incandescente. Com seu saber delicado. Era delicada. Uma borboletinha verde. Sozinha, não tinha pudores. Pensava de tudo um pouco: santos e demônios, egito antigo e nova era, música, poesia, casa, mendigo, guerra santa, bíblia, sexo, filhos, língua estrangeira, língua inventada, beijo de língua, sacanagem, doçura, bolo, natal, passado, orixás, sentimento, glória, caroço de milho, história, barbaridade e os sete anões. Misturava idéias, sonhos, maravilhas. E criava teorias. Queria sair de casa pra contar pra todo mundo. Mas sentia-se como se ofendesse aos outros com seu sexo vivo. Puro. Feminino. Com seu ventre incandescente. Suas palavras criadas. Sua língua gostosa e maliciosa. Sua inocência eterna, impura, serpentinando todos os dias as tentações mais bonitas. Queria ser santa. Mas ardia.

domingo, 25 de maio de 2008

Espelho

E Deus fez Maria Lúcia para que fosse para sempre casta. Mas não se pode nem saber se Maria Lúcia acreditava em Deus. Certa vez disseram que se tornaria freira, mas uma boa noviça jamais usaria um decote tão convidativo. Não que realmente convidasse alguém: Maria Lúcia dizia em alto e bom som que ninguém entraria ali. Sua castidade, no entanto, não era por pudor mas antes por mero desinteresse. Desacreditava na idéia de que o amor poderia um dia de fato provocar nela a imensidão de prazer que sempre almejara. Poupava-se, assim, da frustração a que as outras e os outros se submetiam.

Mas não, não era dada à renúncia cristã. Era ao outro que renunciava, não ao prazer. O prazer, o prazer era tudo em sua vida. Por vezes, em qualquer lugar que estivesse (e isso desde pequena), punha-se a olhar para o céu e a se tocar com toda a volúpia que Deus - o mesmo que inventara sua castidade - havia dado a ela. Se alguém duvidava de sua compulsão masturbatória, bastava reparar em como vidrava-se apaixonada diante do espelho e refazia os próprios cachos dourados quantas vezes fossem necessárias até que ficassem perfeitos. Porque Maria Lúcia era muito habilidosa. Por vezes, quando lhe pediam, até fazia cachos em outras moças. Tinha lá seus momentos generosos. Aliás, que fique claro: não era das mais egoístas. Por isso mesmo era bem querida. Sua voz tinha uma certa melodia pra sempre infantil que fazia qualquer um se encantar. E teve um apaixonado suicida. O que aumentou nela a convicção de que o amor é uma coisa extremamente idiota. Ou: "como renunciar ao prazer de viver em nome de um amor que jamais vingará?" E não era injusta. Não mantinha os apaixonados aos seus pés pelo puro prazer de ser amada. Não. Bastava-se. E deixava livre quem quisesse ir embora. Mas eles ficavam.

Teve um melhor amigo. Um quase-amante. Nunca se tocaram. E Maria Lúcia queria o bem dele mais do que se desejava perfeita refletida no espelho. Foi a maior proximidade do amor ao outro que ela conseguiu alcançar. Por isso ofereceu a liberdade vigorosamente, brigou, disse nunca mais querer vê-lo. Bradou raivosa que o desprezaria para sempre se ele se tornasse um suicida fraco e imbecil. Foi malvada pela primeira vez na vida. Em seu primeiro e único ato de bondade. Ele sentiu ódio. Padeceu de amor. E consolou-se com Luciana. Que era bela e carnuda. Ancas volumosas, corpo generoso. Corpo que mais tarde deu a ele prazer, calor, sossego, filhos e um colo incomparável.

Já Maria Lúcia mudou de cidade. Quis conhecer o mundo. Dizem alguns que virou cabelereira em uma terra distante. Outros contam que finalmente se tornou freira ou puta. Há quem afirme que se casou com um rico empresário e fez tantas plásticas que ficou irreconhecível. O melhor amigo-amante acredita que, assim como Alice, Maria Lúcia entrou num espelho e foi parar no País das Maravilhas. Eu digo que, como Narciso, ela se afogou. Mas talvez esteja feliz, gozando gostosa de si. Quem sabe onde fica a felicidade de quem é, para si, o mundo?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Pequena deusa

Vive-se apenas. O resto é a forma como se descreve a vida. Vívian furtava. Lápis, canetinha, bala, bolinha de gude. Gostava de reter tudo. Guardava o que não lhe pertencia e sempre se esquecia de devolver aquilo que tomava emprestado: era como nunca mais perder as migalhinhas de amor dos outros. Dia desses, toda dolorida nas pernas e toda apertada no coração, pegou na caixa um lápis antigo - há muito tempo furtado da "melhor amiga pra sempre" (a quem nunca mais viu) - e desatou a escrever. Lançou no papel um segredo mal-traçado, um conto um pouco torto, reinventou uma oração antiga e proclamou a própria santidade. Escrevia mal, como toda menina que nunca consegue aprender. Tudo o que fazia, aliás, fazia mal. Como toda menina que nunca consegue aprender. Vívian vazava de amor e implorava ternura a quem quisesse ouvir. Mas as pessoas crescidas nunca eram boas ouvintes. Descobriu que gostavam de ler, e então decidiu escrever. Mas escrevia mal. Trocava as letras, rimava errado, fazia um monte de rabiscos feios. Tinha vontade de escrever versos de amor, ou então palavrões - de ódio. Tinha vontade de aprender muito, mesmo não sendo a mais inteligente, a mais sagaz, a mais perfeita, a mais linda, aquela que daria todo o orgulho do mundo ao mundo inteiro. Mesmo sem fazer com que o universo se prostrasse aos seus pés, queria ter a gotinha da sabedoria de uma pequena deusa. Que era.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Firmina

Firmina era uma mulher valente, mulher de vísceras!
Quando se sentava era de pernas abertas, abocanhava sempre um pedaço maior que sua boca por isso comia sempre de boca aberta. Quando trepava era com vontade, de pernas muito escancaradas e gemidos estridentes. Mordia, babava, chupava tudo que lhe dava gosto.
Um dia conheceu um figurão metido, um almofadinha, com educação francesa e casou-se.
Ele lhe dava aulas de etiqueta e lhe comia de ladinho. Passou por um banho de loja, uma lipo, siliconou os seios e os lábios e fez uma aplicação de botox.
Hoje geme em francês, bem baixinho, pros vizinhos não ouvirem na cobertura ao lado.
Firmina era uma mulher valente, hoje é fraca e feia a pobrezinha.

Mantra

"Pecado é pecado, queira você ou não." Catarina repetia isso para as filhas todas as noites. Repetia em seu íntimo, como se fosse um mantra. Casara-se por causa do baile de Carnaval. Era então bela e sabia voar. O rapaz achegou-se todo enamorado. E toda boa moça sempre quer um lindo enamorado. Desde o baile, fizera amor bonito - bem mais bonito do que havia aprendido mais cedo. E Catarina tinha um segredo: boa moça que havia sido, não podia contar a qualquer um, mas havia aprendido cedo. No mato, atrás da igreja, na escola, nos esconderijos que ela mesma inventava. Havia aprendido sozinha, tocando-se com curiosidade e fúria. "Pecado é pecado, queira você ou não." - repetia o mantra. E pecava. Como pecava.

Desde o baile, aprendera o amor em plenitude. A sugar, a querer, a buscar. O rapaz enamorado era feliz. Catarina era feliz. E a primeira filha veio sem avisar. Catarina casou porque assim deveria ser feito. A vida desandou e Catarina pensou que a beleza morreria para sempre. O rapaz, não mais tão lindo nem tão enamorado, amava a filha. Catarina não sabia o que amar. A segunda filha avisou antes de chegar: Catarina ouviu de uma estrela que uma nova criança faria renascer o amor. E sempre é amor o que se quer. O tempo era cada vez menor. Para os bailes, para os vôos, para a beleza. E não se podia dizer que o rapaz não amava as filhas. Nem que não desejava Catarina. Mas acontece que foi embora pra sempre um dia sem avisar - a gente nunca compreende bem as idas e vindas. Então Catarina fechou as portas de casa, os botões do vestido, e proibiu o pecado para sempre. Porque achava que o destino de uma mulher traça o destino de todas. E que pecado é pecado, queira você ou não.

domingo, 18 de maio de 2008

Fêmeas

Era uma mulher branca de cabelos negros e pescoço alongado. Distinta aos ordinários olhos, mas tinha uma essência maior.
Tinha instinto, coisa de bicho, notava-se pelos olhares. Olhares devoradores.
Cabia no meu primeiro sonho secreto, antigo, a garota nua que se exibia no espelho exaltando a firmeza dos seios e o balanço escuro de suas mechas lisas. Se eu queria tê-la ou se eu queria sê-la, já pouco me importa. Meu desejo antigo era desejo de mistura: fundir um corpo fêmea ao meu corpo ainda fraco. Eu nunca soube ter quentura. Não aquela.
Nunca aquela que abrasava os ambientes por onde ela desfilava. Às vezes nua, como se o natural, o normal não ousasse ser diferente de suas vontades.
E as suas ancas... Perto de mim, magricela, aquelas ancas pareciam rochas, troncos de antigos carvalhos. Eu, menina. Os outros, homens. Perdiam-se, bem sei (quem não se perderia?). Salivavam, queriam, pediam, clamavam. Bicho chama bicho, instinto provoca ferocidades. Mas era pouco, muito pouco. Pouco pra ela. Muitíssimo pouco pra mim. Ferocidade pouca. Pobres deles, não viam o que eu via. De mim eu digo que tenho bons olhos. Que tocam o que é importante. Pobre dela, que também não via o que eu via.
E se ela pudesse ao menos imaginar minhas visões, saberia-se ainda mais bela.
A minha vontade gritava muda, enquanto me disfarçava numa aura de ingenuidade.
Mas ela que não era ingênua deixava que suas vontades berrassem. Nas madrugadas no quarto ao lado, os gemidos me tiravam o sono. Ela tinha esse gemido enlouquecedor.
Noites a fio, insone, cada dia aumentava mais a minha obsessão por sua pele branca e seus cabelos e seu cheiro. Sim. Pois exalava um perfume natural que impregnava minhas narinas, mesmo à distância. Comigo, era simpática. Simpática como se deve ser com a boa colega com quem tratava de assuntos do aluguel à mesa do café da manhã. Só as manhãs eram minhas, e eram breves. Os toques eram sutis, sempre vindos dela e acompanhados de perguntas alegres sobre meus planos, meus dias, meus namorados. Inventei um Carlos, da igreja. Namorado recente, um dia eu apresentaria a ela, é claro. Carlos era meu refúgio. Era minha farsa de pertencer. Diante dela eu precisava fingir pertencer a alguém. Eu queria sê-la, eu queria tê-la, eu queria me misturar com aquela carne vibrante, mas eu precisava ser inteira. Metades não se fundem: fingem uma completude impossível. Inteira, já me sentia dona. Daquela insônia em festa da qual eu queria participar. Inteira, iniciei meus passos. Passos secretos à noite. Porque as manhãs já não me bastavam.
E desses passos resultaram uma noite, parada em frente à porta de seu quarto.
Eu já não ouvia os gemidos, algo estava errado. Empurrei a porta semi aberta e encontrei-a nua, sobre seus lençóis, de pernas escancaradas.
Eu reconheci de imediato o olhar devorador. Um pavor atravessou todo meu corpo. Mas a hipnose de que ela era capaz guiava os meus passos.
Sentei-me à beira da cama, e ela fechou os olhos e de olhos fechados já não me parecia tão grande. Minhas mãos frias, de ansiedade, percorreram seu pescoço longo, enquanto notava seu rosto se contorcer. Ela mordia os lábios e olhava-me fixamente.
Desci as mãos para os seus seios, sentindo-os como se fossem os meus. Seus pêlos arrepiavam-se e ela ainda me olhava. Quando finalmente alcancei sua boceta e a senti quente e úmida, meu corpo respondeu sozinho, ou os desejos há tanto reprimidos foram libertos. Ela me despiu e nos tocamos. Línguas, mãos e coxas se roçando.
Nossas partes se tocando, se esfregando, e ela gemia. E eu, eu me espremia. Passeando minha boca virgem por todo o derrapar daquele corpo. Daquele corpo que era meu. E eu tinha sede da quentura que dela vertia, e saciei com um líquido morno, forte, um visco, um mel, um sal. Fêmeas são líquidas. Aguávamos no nosso cio e eu era mulher. Eu era bela. Eu era esquálida, tímida, infinita, quente. Eu era fêmea.

Por Cora Made e Carla Jaia

Três minutos e quinze segundos

Bella era ela, mulher de corpo sedento e liberdades libertinas.
Aquele jeito de devoradora, sempre com a frase certa, sempre cabeça aberta.
Despia-se da forma mais desejável, mais sensual.
Seduzia a todos os homens e mulheres que conhecia em mesas de bar.
O sexo era uma maravilha, e praticava bastante, com afinco.
O problema dela era que não tinha mais vontade.
Tinha vontade de ser amada.
Tinha mesmo era uma vontade de ser cuidada, bicho de estimação.
Queria ser mulher difícil, daquelas que se leva meses para ter e anos para conquistar.
Mas queria tanto amar que se dava por conquistada em três minutos e quinze segundos.
Achava que ninguém perderia mais que isso em conversas.
Bella era inteligente e culta, mas não conhecia seu potencial.
Quando era só palavras, hipnotizava a todos, era o centro das atenções, mas tinha que meter o corpo no meio, a estúpida.
Porque alguém o queria, e quando não, porque o usava como se fosse seu único atrativo.
Um dia conheceu o homem das conversas intermináveis.
Então ela se despiu das ilusões criadas e vestiu-se de palavras e gestos singelos.
Casou-se com um caderno e se fez poesia.