terça-feira, 8 de julho de 2008

Anjo

Anjo.
Abri a porta do não-real. No início tateei...
E ali se encontravam inúmeros personagens: falantes, inteligentes, sedutores, simpáticos, vividos e eu imatura .Comecei a interagir e vivenciei um duplo - um real, outro virtual.
Encantei-me com a possibilidade de existir num espaço- sonho ...
Vi-me seduzida por discursos cheios de libido digital:era possível sentir tudo o que meu corpo apenas permitia viver em presença.
Fiquei um pouco atordoada e apaixonada por um personagem! Coisa de “pele”...
Enlacei-me na rede.
E numa noite, a surpresa: era ele pegando-me em sobressalto!
Cada vez mais me surpreendia com emoções que só cabiam em carne-viva.
Ele pediu- me:aceita ! Fiquei paralisada...
As fotos postadas revelavam: todo lindo!Iniciamos brincadeiras “de contar ”.Provoquei-o e me derretia toda a cada relato.
Apaixonar-se por um anjo. Que pecado! Mas eram conversas tão lascivas!
Pedi para pararmos que percebendo seu domínio, não me obedeceu.
Troquei novas roupas para sair de vez de seu alcance e cada vez mais confiante avançava e sufocava.De repente, brigávamos como dois antigos amantes.
Até hoje existe esse ódio-amoroso: ao virtuarmo - nos saem faíscas de uma energia desconhecida, que preenchem um espaço só dele.
Ficou para sempre dentro de mim.
Anjo...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

(des) amor

Não sabiam, nem podiam esperar. Mas a menina que sempre compreendeu depressa o norte e o sul, somas, subtrações e divisões, e que decorava apaixonadamente jornadas históricas de personagens ilustres, era a mesma que rapidamente entenderia tudo sobre sexo, como que por intuição. Só ele conhecia a sabedoria suja de sua donzela feiticeira - aquela dama que fechava os botões do vestido até o pescoço e se fazia feia até o quanto lhe era possível. Pediu a mão em casamento, como nos velhos costumes, e era um enamorado de muitas posses. A pequena dama fez que pouco se importou, deu de ombros e disse que mais tarde pensaria nisso. Por dentro, no entanto, tornou-se escarlate ao rubro, vermelha de dar dó. A vermelhidão, que fique claro, não se tratava, de modo algum, do ruborizar efervescente das casadoiras. Ora, se fechava as entradas, era porque não queria casar. Nem fazia gosto dos vestidos de noiva fabricados com primor por dona Célia e as meninas. O vermelho era raiva, sangue nas veias, grito de fera. Era mulher demais para aceitar tamanha afronta: um homem de posses comprar-lhe o corpo, a alma e a vida e ainda fazer agradinhos aos futuros sogros. Agradinhos, pois sim. Na semana anterior os havia levado a um desses passeios de velejador metido a besta. E trazia as orquídeas preferidas de mamãe, todo cheio de pompa. Um almofadinha!

O casamento se deu alguns meses depois. Ela foi uma noiva morena e bela - bela como jamais havia sido vista. Ele babava um tanto, o almofadinha. Dama o suficiente para esconder o asco, casou-se linda e treinou alguns sorrisos deslumbrantes. De resto, ainda era escarlate por dentro e enojava-se do destino fabricado: todas as noites rezava a ninguém, pedindo para que um dia tivesse coragem de ser alguém. A noite de núpcias da virgem foi um deleite estupendo. O marido tratou de tocá-la com toda a delicadeza do mundo mas ela, impaciente, escancarou as pernas e mostrou-se úmida, intacta, mas pronta, inteiramente pronta. Aos poucos ele foi percebendo que sua esposa não era mulher de muitas palavras e muito menos de fino trato. Passava os dias costurando, bordando, fazendo-se de prendada, e durante as madrugadas escapava das grades invisíveis que a prendiam e só então era inteira, verdadeira, viva. Deixava claro que não o amava, mas que importava essa trivialidade besta, esse tal de amor, se recebia dela o gozo puro, perfeito, sem precisar visitar bordéis e becos? Era feliz porque, em tempos como aqueles, era o único a ter em casa a dama e a prostituta. E a ninguém contava sua proeza: era um cavalheiro.

Ela, em seu silêncio, não sabia ser feliz. Era o ponto máximo daquilo a que costumam conhecer como insatisfação feminina. Reconhecia: o marido era um bom homem. Umas três ou quatro vezes chegou a amá-lo, especialmente nos momentos em que mais o destratava e o fazia um homem infeliz. E então, diante de alguém tão sofrido, sentia piedade. Uma insuportável e apaixonada piedade. "O amor é piedoso" - já havia ouvido ou lido algo assim. E o amor era tão-somente isso: piedoso. Uma compaixão desvairada, rara. Sentia o mesmo amor diante de cãezinhos doentes e de pessoas que lhe pareciam muito, muito feias. E só podia amar o fraco, o feio, o enfermo: era - secretamente em sua alma escarlate - a senhora dos desvalidos. Uma dama cruel e santa. Que precisava ver o sofrimento escancarado para, então, amar. Porque seu espelho era também doente.

Agora olhava-se. Tinha um rosto lindo de doer, mas era opaca. Nenhuma das cores da manhã refletiam em seu semblante, e o exagero rubro que a tomava internamente faltava-lhe ali, do lado de fora. E então era feia. Feia, feia, feia. Criatura que se escancarava durante as madrugadas para oferecer a única beleza que reconhecia: a beleza de ser fêmea. "Não o meu rosto. Venha e veja aqui, entre as minhas pernas..." - susurrava inaudível. Ele não ouvia. Amava. Amava-a fechada ou aberta, límpida ou opaca. O rosto, o ventre e aquelas coxas macias. E ela, indiferenciada: porque o rosto belo provocava-lhe a angústia de, apesar da beleza, não se destacar em multidões. E as coxas macias tinham a maciez que toda mulher deveria ter, assim achava ela. Indiferenciada. Era tão-somente aquilo: carne crua, quente e bem-feita. Amada por nada. Por motivo nenhum. Mas amada. Irritantemente amada. E agora baixava os olhos e jurava nunca mais se olhar assim.

O tempo de alguém diante do espelho é uma coisa misteriosa. Dizem que pára, silencia e depois passa a andar lentamente, em passos mais vagarosos que os do ponteiro do relógio. Não deve ter ficado ali mais que cinco minutos, mas poderia dizer sem mentir que havia sentido as horas se passando até completar cinco dias inteiros. Um tempo penoso. Não era, então, a mera admiradora narcisista como costumava ser quando se deparava com o espelho da loja de cosméticos. Não. Não fitava a linha perfeita de sua sombrancelha, mas metia-se em si, nas entranhas, enfiava-se pelos olhos e se fazia saltar pelos poros. Sentia-se. A menina apressada, feia, medrosa. A garota tímida, morta, infeliz. Uma idosa. Sábia. Cruel. Fraca. Um pedaço de carne. Disforme. Carniça. Um bicho. A mulher que por um acidente assim havia nascido, e que no fundo sabia que poderia ser um homem: bastava um risco incerto na palma de sua mão, bem no princípio da vida, um risco outro que costuraria um outro destino. Era mulher por acaso. E o acaso era sua dor.

Foram apenas cinco minutos. Foram longos cinco dias. Então o marido - almofadinha, chato, aquele homem qualquer... -, então o marido tocou sua mão esquerda. Beijou-lhe a bochecha. Elogiou-a como sempre. E ela sabia que tudo aquilo era em vão. Que jamais se sentiria completa. Mas sorriu. Às vezes se lembrava do motivo que a havia levado ao altar. Não era medo, menos ainda amor. Era porque precisava de uma borda, ainda que suave: uma borda que a fizesse ilusoriamente humana, única, peça rara. Já há muito tempo havia desistido de aprender a desenhar, e então pediu: "desenha-me para o resto da vida...", e ele respondeu: "seja feita a sua vontade...". Só que o resto da vida ainda estava longe. E a vontade dela era indefinível... E eles, contornados com bordas delicadas, sabiam da insegurança do tempo, e rezavam ao Agora pedindo que não deixasse faltar gozo, um aperto de mão e aquela coisa suave que, na falta de um nome mais justo, às vezes chamavam de amor. Mas ela não amava: nunca havia aprendido de fato.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Lanhos

Prazer em estiletar –se.
Desmanchar-se em arrepios e dor fina, era uma pequena morte.
Sempre ...sempre... com aquela que chamava de “amiga”, uma faca que estava ao alcance de suas mãos numa gaveta próxima ao seu computador, quando de uma noite solitária , ou uma rejeição, acompanhava a agonia de um corte...um pequeno e finíssimo corte. Nos antebraços, parte interna, quase sempre. E havia muitas cicatrizes daquelas...
E eu, estupefata ...
Era verdade!
Aquilo que parecia uma fantasia virtual, era a realidade nua e crua.
Nem sei o que me fez ir visitar aquela mulher que era vista com parcimônia por alguns da cidade mineira, mística.
Excêntrica ... era uma criatura meio que andrógina, no seu jeito.
Mas eu que havia acompanhado de longe uma noite inteira de agonia e vinho...muito vinho... e conversas telefônicas com amigos comuns a convencer-lhes que vida era a opção, fui convocada para vê-la de pertinho...
Nosso encontro foi surreal...
Como se eu levasse um pedaço daquele que a traíra silenciosamente.
Abraçou-me? Não . Abraçou-o.
Foram horas de curiosidade, de catarse, de radiância... estávamos felizes, de verdade.
Eu representava o que ela só tinha vivido virtualmente, até aquele momento.
Como se coubesse em mim toda a realidade uma de paixão e dor vividas....
Fiquei meio-espectadora ...
E vi que escarificarem-se era um hábito de outros vários amigos seus...
Sangrar nos momentos de angústia, destilando a dor pungente em seu interior...
São Tomé das Letras...
Cidade intrigante!

terça-feira, 10 de junho de 2008

Obsessividades

Mãezinha, há um desafio besta que me faz desejar continuar vivendo, descendo, pulsando. É a vontade de saber onde vai dar. Eu tentei me perder, rasgar meu peito e destroçar tudinho, mas não pude. Não tive coragem de me gastar antes de ter tempo de desvendar o mistério. Eu não sou anjo, o caso é que meu silêncio engana. É gostoso, misterioso, pleno. Rasgar é coisa pra gente jovem, mamãe, e eu nasci idosa. Nasci pensando. Nasci refletindo sobre o porquê das cores e sobre as lindezas do sexo. Mãe, eu sou um gênio. Genialmente estupenda. Ilimitadamente sábia. Mas antes do tempo. Antes de sentir. Antes de gozar. Funciona assim: enquanto o mundo inteiro se põe a falhar pra depois descobrir o arrependimento, eu já me arrependi antes de errar e cá estou cumprindo penitência: "Papai do Céu me perdoe pelo que ainda nem sei se sou capaz de fazer...".

Todas as vezes em que você me viu ajoelhada no milho no canto da sala, esteja certa de que antes eu já havia pecado em pensamento de forma tão insuportável que meu vil prazer já se fazia em carne viva. Na minha carne. Eu nasci de carne já batida, de pecado adiantado, nasci de fogo já aceso quiçá em outras vidas. E agora me vem a vontade de saber onde vai dar. Tudo isso. Onde dá essa minha vida humana que eu já manchei de tanto pensar. E que é infinita como minha sabedoria louca. Eu vivo, mamãe... Eu vivo porque espero... Porque não se gasta a vida. Porque eu não gasto. Porque piso na linha da margem entre lá e cá. E não decido. Meu tempo é infinito.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Serpentear

O que faz uma mulher serpentear?
Fomos feitas para rastejar ou para simplesmente acompanhar?
Quando o fiz foi com ímpetos de fera... não a ferida, mas a instintiva e aduladora. Sim, porque adular é um ato feminino...
Corri em torno como se demarcasse meu território e o protegesse contra todos os males.
Ali não estava uma mulher, e sim uma serpente. E eu serpenteava ...
Seduzir comove a todos. Ser seduzido amedronta.
Cada vez que me enroscava me derretia toda em seiva promissora.
E me transformava em santa. A serpente vil em ser inofensivo, acolhedor, inominado.
E depois de sugada toda a energia voltava a ser plena para a minha alma.
Ah! Era uma completude que viciava ... encontros cúmplices da paixão.
Serpentear ...

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Surtei

Olha que eu me peguei assim: sufocada, completamente tomada de tesão...e quando percebi estava tomada : por você.
Veja só: pensava que eu era de pedra pra suportar tanta provocacão?
Menino, quando eu pedi prá parar, já não iria aguentar mais nem uma insinuação sua.
E você continuou, sadicamente...
Brincadeira. Essa foi a desculpa que arrumamos.
Como? Se você na nossa primeira conversa já se despiu todo?!
E me "comia "quando eu te chamava de gostoso!
Você brincou com suas meninas, com a sua platéia feminina, conseguiu com que elas ficassem mais e mais interessadas.Isso fazia parte do plano.
Mas, não pensava é que eu poderia cair em suas malhas... ou contava?
E tinha prazer nisso, também? Brincava com todas.
Acho que pela sua idade, a brincadeira pode ir até onde nem imaginamos...
Não acredita? Acha que estou sendo cínica, né?
Remorsos? Sinto é prazer em conseguir deixar um homem seguro de si tão abalado!
Eu te apunhalei...como disse.E você, me seduziu.O que é pior? Não perdôo...
É! Prazer! Sou sádica! Ou melhor, sadomazoca.
Porque na nossa sessão de sexo você foi um mestre.Só faltou rasgar minhas calcinhas com sua navalha...eu ia pedir.
Mas como você sabe brincar! Parabéns!
Olha , não faz assim com mais ninguém. Quem resistirá a um homem tão...imaginoso?!
E como iria suportar qualquer conversa de despedida?
Deixei-lhes uma poesia no tópico: chama-se Delete.
Mas, fique sabendo que me fez bem...
Apenas não sabe dos seus limites, egoisticamente.
Aff...menino gostoso!
Enlouqueci...

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Borboletinha verde

Sentia-se como se ofendesse aos outros com seu sexo. Com sua doçura incandescente. Com seu saber delicado. Era delicada. Uma borboletinha verde. Sozinha, não tinha pudores. Pensava de tudo um pouco: santos e demônios, egito antigo e nova era, música, poesia, casa, mendigo, guerra santa, bíblia, sexo, filhos, língua estrangeira, língua inventada, beijo de língua, sacanagem, doçura, bolo, natal, passado, orixás, sentimento, glória, caroço de milho, história, barbaridade e os sete anões. Misturava idéias, sonhos, maravilhas. E criava teorias. Queria sair de casa pra contar pra todo mundo. Mas sentia-se como se ofendesse aos outros com seu sexo vivo. Puro. Feminino. Com seu ventre incandescente. Suas palavras criadas. Sua língua gostosa e maliciosa. Sua inocência eterna, impura, serpentinando todos os dias as tentações mais bonitas. Queria ser santa. Mas ardia.

domingo, 25 de maio de 2008

Espelho

E Deus fez Maria Lúcia para que fosse para sempre casta. Mas não se pode nem saber se Maria Lúcia acreditava em Deus. Certa vez disseram que se tornaria freira, mas uma boa noviça jamais usaria um decote tão convidativo. Não que realmente convidasse alguém: Maria Lúcia dizia em alto e bom som que ninguém entraria ali. Sua castidade, no entanto, não era por pudor mas antes por mero desinteresse. Desacreditava na idéia de que o amor poderia um dia de fato provocar nela a imensidão de prazer que sempre almejara. Poupava-se, assim, da frustração a que as outras e os outros se submetiam.

Mas não, não era dada à renúncia cristã. Era ao outro que renunciava, não ao prazer. O prazer, o prazer era tudo em sua vida. Por vezes, em qualquer lugar que estivesse (e isso desde pequena), punha-se a olhar para o céu e a se tocar com toda a volúpia que Deus - o mesmo que inventara sua castidade - havia dado a ela. Se alguém duvidava de sua compulsão masturbatória, bastava reparar em como vidrava-se apaixonada diante do espelho e refazia os próprios cachos dourados quantas vezes fossem necessárias até que ficassem perfeitos. Porque Maria Lúcia era muito habilidosa. Por vezes, quando lhe pediam, até fazia cachos em outras moças. Tinha lá seus momentos generosos. Aliás, que fique claro: não era das mais egoístas. Por isso mesmo era bem querida. Sua voz tinha uma certa melodia pra sempre infantil que fazia qualquer um se encantar. E teve um apaixonado suicida. O que aumentou nela a convicção de que o amor é uma coisa extremamente idiota. Ou: "como renunciar ao prazer de viver em nome de um amor que jamais vingará?" E não era injusta. Não mantinha os apaixonados aos seus pés pelo puro prazer de ser amada. Não. Bastava-se. E deixava livre quem quisesse ir embora. Mas eles ficavam.

Teve um melhor amigo. Um quase-amante. Nunca se tocaram. E Maria Lúcia queria o bem dele mais do que se desejava perfeita refletida no espelho. Foi a maior proximidade do amor ao outro que ela conseguiu alcançar. Por isso ofereceu a liberdade vigorosamente, brigou, disse nunca mais querer vê-lo. Bradou raivosa que o desprezaria para sempre se ele se tornasse um suicida fraco e imbecil. Foi malvada pela primeira vez na vida. Em seu primeiro e único ato de bondade. Ele sentiu ódio. Padeceu de amor. E consolou-se com Luciana. Que era bela e carnuda. Ancas volumosas, corpo generoso. Corpo que mais tarde deu a ele prazer, calor, sossego, filhos e um colo incomparável.

Já Maria Lúcia mudou de cidade. Quis conhecer o mundo. Dizem alguns que virou cabelereira em uma terra distante. Outros contam que finalmente se tornou freira ou puta. Há quem afirme que se casou com um rico empresário e fez tantas plásticas que ficou irreconhecível. O melhor amigo-amante acredita que, assim como Alice, Maria Lúcia entrou num espelho e foi parar no País das Maravilhas. Eu digo que, como Narciso, ela se afogou. Mas talvez esteja feliz, gozando gostosa de si. Quem sabe onde fica a felicidade de quem é, para si, o mundo?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Pequena deusa

Vive-se apenas. O resto é a forma como se descreve a vida. Vívian furtava. Lápis, canetinha, bala, bolinha de gude. Gostava de reter tudo. Guardava o que não lhe pertencia e sempre se esquecia de devolver aquilo que tomava emprestado: era como nunca mais perder as migalhinhas de amor dos outros. Dia desses, toda dolorida nas pernas e toda apertada no coração, pegou na caixa um lápis antigo - há muito tempo furtado da "melhor amiga pra sempre" (a quem nunca mais viu) - e desatou a escrever. Lançou no papel um segredo mal-traçado, um conto um pouco torto, reinventou uma oração antiga e proclamou a própria santidade. Escrevia mal, como toda menina que nunca consegue aprender. Tudo o que fazia, aliás, fazia mal. Como toda menina que nunca consegue aprender. Vívian vazava de amor e implorava ternura a quem quisesse ouvir. Mas as pessoas crescidas nunca eram boas ouvintes. Descobriu que gostavam de ler, e então decidiu escrever. Mas escrevia mal. Trocava as letras, rimava errado, fazia um monte de rabiscos feios. Tinha vontade de escrever versos de amor, ou então palavrões - de ódio. Tinha vontade de aprender muito, mesmo não sendo a mais inteligente, a mais sagaz, a mais perfeita, a mais linda, aquela que daria todo o orgulho do mundo ao mundo inteiro. Mesmo sem fazer com que o universo se prostrasse aos seus pés, queria ter a gotinha da sabedoria de uma pequena deusa. Que era.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Firmina

Firmina era uma mulher valente, mulher de vísceras!
Quando se sentava era de pernas abertas, abocanhava sempre um pedaço maior que sua boca por isso comia sempre de boca aberta. Quando trepava era com vontade, de pernas muito escancaradas e gemidos estridentes. Mordia, babava, chupava tudo que lhe dava gosto.
Um dia conheceu um figurão metido, um almofadinha, com educação francesa e casou-se.
Ele lhe dava aulas de etiqueta e lhe comia de ladinho. Passou por um banho de loja, uma lipo, siliconou os seios e os lábios e fez uma aplicação de botox.
Hoje geme em francês, bem baixinho, pros vizinhos não ouvirem na cobertura ao lado.
Firmina era uma mulher valente, hoje é fraca e feia a pobrezinha.

Mantra

"Pecado é pecado, queira você ou não." Catarina repetia isso para as filhas todas as noites. Repetia em seu íntimo, como se fosse um mantra. Casara-se por causa do baile de Carnaval. Era então bela e sabia voar. O rapaz achegou-se todo enamorado. E toda boa moça sempre quer um lindo enamorado. Desde o baile, fizera amor bonito - bem mais bonito do que havia aprendido mais cedo. E Catarina tinha um segredo: boa moça que havia sido, não podia contar a qualquer um, mas havia aprendido cedo. No mato, atrás da igreja, na escola, nos esconderijos que ela mesma inventava. Havia aprendido sozinha, tocando-se com curiosidade e fúria. "Pecado é pecado, queira você ou não." - repetia o mantra. E pecava. Como pecava.

Desde o baile, aprendera o amor em plenitude. A sugar, a querer, a buscar. O rapaz enamorado era feliz. Catarina era feliz. E a primeira filha veio sem avisar. Catarina casou porque assim deveria ser feito. A vida desandou e Catarina pensou que a beleza morreria para sempre. O rapaz, não mais tão lindo nem tão enamorado, amava a filha. Catarina não sabia o que amar. A segunda filha avisou antes de chegar: Catarina ouviu de uma estrela que uma nova criança faria renascer o amor. E sempre é amor o que se quer. O tempo era cada vez menor. Para os bailes, para os vôos, para a beleza. E não se podia dizer que o rapaz não amava as filhas. Nem que não desejava Catarina. Mas acontece que foi embora pra sempre um dia sem avisar - a gente nunca compreende bem as idas e vindas. Então Catarina fechou as portas de casa, os botões do vestido, e proibiu o pecado para sempre. Porque achava que o destino de uma mulher traça o destino de todas. E que pecado é pecado, queira você ou não.

domingo, 18 de maio de 2008

Fêmeas

Era uma mulher branca de cabelos negros e pescoço alongado. Distinta aos ordinários olhos, mas tinha uma essência maior.
Tinha instinto, coisa de bicho, notava-se pelos olhares. Olhares devoradores.
Cabia no meu primeiro sonho secreto, antigo, a garota nua que se exibia no espelho exaltando a firmeza dos seios e o balanço escuro de suas mechas lisas. Se eu queria tê-la ou se eu queria sê-la, já pouco me importa. Meu desejo antigo era desejo de mistura: fundir um corpo fêmea ao meu corpo ainda fraco. Eu nunca soube ter quentura. Não aquela.
Nunca aquela que abrasava os ambientes por onde ela desfilava. Às vezes nua, como se o natural, o normal não ousasse ser diferente de suas vontades.
E as suas ancas... Perto de mim, magricela, aquelas ancas pareciam rochas, troncos de antigos carvalhos. Eu, menina. Os outros, homens. Perdiam-se, bem sei (quem não se perderia?). Salivavam, queriam, pediam, clamavam. Bicho chama bicho, instinto provoca ferocidades. Mas era pouco, muito pouco. Pouco pra ela. Muitíssimo pouco pra mim. Ferocidade pouca. Pobres deles, não viam o que eu via. De mim eu digo que tenho bons olhos. Que tocam o que é importante. Pobre dela, que também não via o que eu via.
E se ela pudesse ao menos imaginar minhas visões, saberia-se ainda mais bela.
A minha vontade gritava muda, enquanto me disfarçava numa aura de ingenuidade.
Mas ela que não era ingênua deixava que suas vontades berrassem. Nas madrugadas no quarto ao lado, os gemidos me tiravam o sono. Ela tinha esse gemido enlouquecedor.
Noites a fio, insone, cada dia aumentava mais a minha obsessão por sua pele branca e seus cabelos e seu cheiro. Sim. Pois exalava um perfume natural que impregnava minhas narinas, mesmo à distância. Comigo, era simpática. Simpática como se deve ser com a boa colega com quem tratava de assuntos do aluguel à mesa do café da manhã. Só as manhãs eram minhas, e eram breves. Os toques eram sutis, sempre vindos dela e acompanhados de perguntas alegres sobre meus planos, meus dias, meus namorados. Inventei um Carlos, da igreja. Namorado recente, um dia eu apresentaria a ela, é claro. Carlos era meu refúgio. Era minha farsa de pertencer. Diante dela eu precisava fingir pertencer a alguém. Eu queria sê-la, eu queria tê-la, eu queria me misturar com aquela carne vibrante, mas eu precisava ser inteira. Metades não se fundem: fingem uma completude impossível. Inteira, já me sentia dona. Daquela insônia em festa da qual eu queria participar. Inteira, iniciei meus passos. Passos secretos à noite. Porque as manhãs já não me bastavam.
E desses passos resultaram uma noite, parada em frente à porta de seu quarto.
Eu já não ouvia os gemidos, algo estava errado. Empurrei a porta semi aberta e encontrei-a nua, sobre seus lençóis, de pernas escancaradas.
Eu reconheci de imediato o olhar devorador. Um pavor atravessou todo meu corpo. Mas a hipnose de que ela era capaz guiava os meus passos.
Sentei-me à beira da cama, e ela fechou os olhos e de olhos fechados já não me parecia tão grande. Minhas mãos frias, de ansiedade, percorreram seu pescoço longo, enquanto notava seu rosto se contorcer. Ela mordia os lábios e olhava-me fixamente.
Desci as mãos para os seus seios, sentindo-os como se fossem os meus. Seus pêlos arrepiavam-se e ela ainda me olhava. Quando finalmente alcancei sua boceta e a senti quente e úmida, meu corpo respondeu sozinho, ou os desejos há tanto reprimidos foram libertos. Ela me despiu e nos tocamos. Línguas, mãos e coxas se roçando.
Nossas partes se tocando, se esfregando, e ela gemia. E eu, eu me espremia. Passeando minha boca virgem por todo o derrapar daquele corpo. Daquele corpo que era meu. E eu tinha sede da quentura que dela vertia, e saciei com um líquido morno, forte, um visco, um mel, um sal. Fêmeas são líquidas. Aguávamos no nosso cio e eu era mulher. Eu era bela. Eu era esquálida, tímida, infinita, quente. Eu era fêmea.

Por Cora Made e Carla Jaia

Três minutos e quinze segundos

Bella era ela, mulher de corpo sedento e liberdades libertinas.
Aquele jeito de devoradora, sempre com a frase certa, sempre cabeça aberta.
Despia-se da forma mais desejável, mais sensual.
Seduzia a todos os homens e mulheres que conhecia em mesas de bar.
O sexo era uma maravilha, e praticava bastante, com afinco.
O problema dela era que não tinha mais vontade.
Tinha vontade de ser amada.
Tinha mesmo era uma vontade de ser cuidada, bicho de estimação.
Queria ser mulher difícil, daquelas que se leva meses para ter e anos para conquistar.
Mas queria tanto amar que se dava por conquistada em três minutos e quinze segundos.
Achava que ninguém perderia mais que isso em conversas.
Bella era inteligente e culta, mas não conhecia seu potencial.
Quando era só palavras, hipnotizava a todos, era o centro das atenções, mas tinha que meter o corpo no meio, a estúpida.
Porque alguém o queria, e quando não, porque o usava como se fosse seu único atrativo.
Um dia conheceu o homem das conversas intermináveis.
Então ela se despiu das ilusões criadas e vestiu-se de palavras e gestos singelos.
Casou-se com um caderno e se fez poesia.