quarta-feira, 18 de junho de 2008

(des) amor

Não sabiam, nem podiam esperar. Mas a menina que sempre compreendeu depressa o norte e o sul, somas, subtrações e divisões, e que decorava apaixonadamente jornadas históricas de personagens ilustres, era a mesma que rapidamente entenderia tudo sobre sexo, como que por intuição. Só ele conhecia a sabedoria suja de sua donzela feiticeira - aquela dama que fechava os botões do vestido até o pescoço e se fazia feia até o quanto lhe era possível. Pediu a mão em casamento, como nos velhos costumes, e era um enamorado de muitas posses. A pequena dama fez que pouco se importou, deu de ombros e disse que mais tarde pensaria nisso. Por dentro, no entanto, tornou-se escarlate ao rubro, vermelha de dar dó. A vermelhidão, que fique claro, não se tratava, de modo algum, do ruborizar efervescente das casadoiras. Ora, se fechava as entradas, era porque não queria casar. Nem fazia gosto dos vestidos de noiva fabricados com primor por dona Célia e as meninas. O vermelho era raiva, sangue nas veias, grito de fera. Era mulher demais para aceitar tamanha afronta: um homem de posses comprar-lhe o corpo, a alma e a vida e ainda fazer agradinhos aos futuros sogros. Agradinhos, pois sim. Na semana anterior os havia levado a um desses passeios de velejador metido a besta. E trazia as orquídeas preferidas de mamãe, todo cheio de pompa. Um almofadinha!

O casamento se deu alguns meses depois. Ela foi uma noiva morena e bela - bela como jamais havia sido vista. Ele babava um tanto, o almofadinha. Dama o suficiente para esconder o asco, casou-se linda e treinou alguns sorrisos deslumbrantes. De resto, ainda era escarlate por dentro e enojava-se do destino fabricado: todas as noites rezava a ninguém, pedindo para que um dia tivesse coragem de ser alguém. A noite de núpcias da virgem foi um deleite estupendo. O marido tratou de tocá-la com toda a delicadeza do mundo mas ela, impaciente, escancarou as pernas e mostrou-se úmida, intacta, mas pronta, inteiramente pronta. Aos poucos ele foi percebendo que sua esposa não era mulher de muitas palavras e muito menos de fino trato. Passava os dias costurando, bordando, fazendo-se de prendada, e durante as madrugadas escapava das grades invisíveis que a prendiam e só então era inteira, verdadeira, viva. Deixava claro que não o amava, mas que importava essa trivialidade besta, esse tal de amor, se recebia dela o gozo puro, perfeito, sem precisar visitar bordéis e becos? Era feliz porque, em tempos como aqueles, era o único a ter em casa a dama e a prostituta. E a ninguém contava sua proeza: era um cavalheiro.

Ela, em seu silêncio, não sabia ser feliz. Era o ponto máximo daquilo a que costumam conhecer como insatisfação feminina. Reconhecia: o marido era um bom homem. Umas três ou quatro vezes chegou a amá-lo, especialmente nos momentos em que mais o destratava e o fazia um homem infeliz. E então, diante de alguém tão sofrido, sentia piedade. Uma insuportável e apaixonada piedade. "O amor é piedoso" - já havia ouvido ou lido algo assim. E o amor era tão-somente isso: piedoso. Uma compaixão desvairada, rara. Sentia o mesmo amor diante de cãezinhos doentes e de pessoas que lhe pareciam muito, muito feias. E só podia amar o fraco, o feio, o enfermo: era - secretamente em sua alma escarlate - a senhora dos desvalidos. Uma dama cruel e santa. Que precisava ver o sofrimento escancarado para, então, amar. Porque seu espelho era também doente.

Agora olhava-se. Tinha um rosto lindo de doer, mas era opaca. Nenhuma das cores da manhã refletiam em seu semblante, e o exagero rubro que a tomava internamente faltava-lhe ali, do lado de fora. E então era feia. Feia, feia, feia. Criatura que se escancarava durante as madrugadas para oferecer a única beleza que reconhecia: a beleza de ser fêmea. "Não o meu rosto. Venha e veja aqui, entre as minhas pernas..." - susurrava inaudível. Ele não ouvia. Amava. Amava-a fechada ou aberta, límpida ou opaca. O rosto, o ventre e aquelas coxas macias. E ela, indiferenciada: porque o rosto belo provocava-lhe a angústia de, apesar da beleza, não se destacar em multidões. E as coxas macias tinham a maciez que toda mulher deveria ter, assim achava ela. Indiferenciada. Era tão-somente aquilo: carne crua, quente e bem-feita. Amada por nada. Por motivo nenhum. Mas amada. Irritantemente amada. E agora baixava os olhos e jurava nunca mais se olhar assim.

O tempo de alguém diante do espelho é uma coisa misteriosa. Dizem que pára, silencia e depois passa a andar lentamente, em passos mais vagarosos que os do ponteiro do relógio. Não deve ter ficado ali mais que cinco minutos, mas poderia dizer sem mentir que havia sentido as horas se passando até completar cinco dias inteiros. Um tempo penoso. Não era, então, a mera admiradora narcisista como costumava ser quando se deparava com o espelho da loja de cosméticos. Não. Não fitava a linha perfeita de sua sombrancelha, mas metia-se em si, nas entranhas, enfiava-se pelos olhos e se fazia saltar pelos poros. Sentia-se. A menina apressada, feia, medrosa. A garota tímida, morta, infeliz. Uma idosa. Sábia. Cruel. Fraca. Um pedaço de carne. Disforme. Carniça. Um bicho. A mulher que por um acidente assim havia nascido, e que no fundo sabia que poderia ser um homem: bastava um risco incerto na palma de sua mão, bem no princípio da vida, um risco outro que costuraria um outro destino. Era mulher por acaso. E o acaso era sua dor.

Foram apenas cinco minutos. Foram longos cinco dias. Então o marido - almofadinha, chato, aquele homem qualquer... -, então o marido tocou sua mão esquerda. Beijou-lhe a bochecha. Elogiou-a como sempre. E ela sabia que tudo aquilo era em vão. Que jamais se sentiria completa. Mas sorriu. Às vezes se lembrava do motivo que a havia levado ao altar. Não era medo, menos ainda amor. Era porque precisava de uma borda, ainda que suave: uma borda que a fizesse ilusoriamente humana, única, peça rara. Já há muito tempo havia desistido de aprender a desenhar, e então pediu: "desenha-me para o resto da vida...", e ele respondeu: "seja feita a sua vontade...". Só que o resto da vida ainda estava longe. E a vontade dela era indefinível... E eles, contornados com bordas delicadas, sabiam da insegurança do tempo, e rezavam ao Agora pedindo que não deixasse faltar gozo, um aperto de mão e aquela coisa suave que, na falta de um nome mais justo, às vezes chamavam de amor. Mas ela não amava: nunca havia aprendido de fato.

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